Traduzindo software com qualidade

Venho traduzindo softwares e documentação técnica há pelo menos dez anos, seja do inglês ou do espanhol para o Português do Brasil. É uma atividade interessante e ao mesmo tempo ambígua ao meu dia-a-dia pois não uso em meu laptop nenhum software em português; todos em inglês. Coisas do vício creio eu.

Neste período tive o prazer de traduzir grandes softwares como dotProject, TikiWiki, Mambo, Joomla!, pequenos softwares ou componentes e também vários outros softwares de clientes. Posso afirmar que é uma área que me dá muito prazer, seja pelo trabalho em si ou ainda pela contribuição que esta atividade carrega em seu bojo pois, com a tradução de um software, mais pessoas podem usá-lo e novas oportunidades se abrem. Uma verdadeira bola de neve com resultados expressivos tanto para o desenvolvedor quanto para seus usuários.

Como não sou desenvolvedor na maioria das linguagens usadas em aplicações para desktop, esta é uma das formas que encontro para colaborar com projetos que me permitem andar na linha sem a utilização de software pirata e também de encomizar uma boa soma de dinheiro. Como exemplo, podem ser citadas as suítes de escritório que custam cerca de US$ 300 dólares, os quais são economizados e direcionados para uma viagem ou ainda para a cervejinha do final de semana.

Mas traduzir software (e documentação) não é somente trocar “and” por “e”. Vai muito além disso e possui como qualquer área, algumas regras, criatividade, pensamento lógico e claro, muito trabalho. E aqui vou mostrar um pouco do que é este trabalho em formato de um guia utilizável por aqueles que, como eu, desejam colaborar com os desenvolvedores de software mas não são programadores. Acredite, a tradução pode ser uma ótima oportunidade para ambos.

O ponto de partida: diferenças entre tradução de software e documentação
A principal diferença entre a tradução de um software e a tradução de documentação é a linguagem usada. Em um software, comandos, menus, telas e janelas são traduzidos de uma forma linear, sem a facilidade da dissertação encontrada na documentação. Assim, quando traduzimos um software devemos levar em conta a mensagem passada de determinado comando ou opção para o usuário, de forma rápida e clara. Como exemplo, não é possível traduzir um comando de impressão (Print – Imprimir) para “Clique aqui para imprimir”. A mensagem deve ser curta (inclusive para que possa ser colocada corretamente no espaço destinado à mesma no software) e de fácil entendimento.

Isso não acontece na tradução de documentação, que pode (e deve) ser dissertativa. Utilizando o exemplo anterior, poderia ser usada uma frase como “para imprimir seu documento é necessário clicar na opção Imprimir do menu Arquivo”. Na documentação podemos liberar a tradução para criarmos efetivamente uma nova versão do documento em outro idioma. Este ponto é muito importante e deve sempre ser levando em conta pois a intenção não é fazer uma tradução literal do texto original, mas sim uma versão que possa ser compreendida com facilidade pelos falantes do idioma de destino e que leva em conta todas as nuances da língua, seja falada ou escrita.

O que traduzir
Não temos conhecimento de tudo e não é este o mote de nossas vidas. Assim fazer uma tradução de um texto de física sendo você professor de música, torna-se algo extremamente difícil, cansativo e na maioria das vezes com um resultado pobre. Este comentário serve para aqueles que desejam por exemplo traduzir um game mas não estão familiarizados com esta área. Existem verbetes, termos, gírias e expressões que são somente usadas dentro deste universo e que podem se tornar verdadeiras “pegadinhas” para o tradutor.

Então, se pretende traduzir um software ou uma documentação, procure aquela com que está familiarizado com os termos existentes. Muitas traduções tornam-se verdadeiras obras hilárias por serem traduzidas sem este devido cuidado. Se você não está a par da área de medicina, não tente traduzir um software relacionado com ela. Da mesma forma, se você não conhece de radioamadorismo, deixe que um radioamador faça a tradução. Certamente o entendimento de QRU, QRZ, QTC, RTTY e outras coisas se tornarão muito mais fáceis e estarão perfeitamente inseridas no contexto do software e da documentação.

O que se traduz? Tudo?
Outra situação digna de riso é a tradução de palavras e expressões que não existem no idioma de destino ou que mesmo existindo, não são usadas dentro de determinado contexto. Um exemplo é a tradução da palavra “mouse” para “dispositivo apontador” ou ainda a tradução de “web” para “teia” (pior ainda é “site” para “sítio”). Não existe, para nosso idioma, maior sacrilégio que abrir um software e dentro dele encontrarmos palavras como estas. Além de estarem fora daquilo que é convencionado, conseguem deixar o usuário na dúvida sobre a utilização do comando.

O Português do Brasil (ou o Português Brasileiro, como queira) possui características interessantes que fazem dele um idioma extremamente bonito e diversificado. A capacidade de mesclagem de termos, palavras e expressões de outros idiomas, bem como a criação constante de novos verbetes pela população falante são comuns e extremamente importantes. Ao contrário de nossos colegas de língua lusos, abraçamos comumente palavras estrangeiras e criamos novas, sejam derivadas destas ou não. Quem nunca ouviu um “deletar” dentro de um escritório? Além de absorvermos o verbo “delete” da língua inglesa, mantivemos todas as suas formas. Eu deleto, tu deletas, ele deleta… Claro que não devemos levar ao extremo esta qualidade. “Printar” não é aceito nem mesmo pelos mais incultos ou ignorantes nas ciências computacionais; o correto é “Imprimir”.

A melhor dica para não cometer estes deslizes é criar uma lista de palavras que não devem ser traduzidas, ou seja, um mini-dicionário pessoal que pode ser consultado sempre que aparecer um “hard disk” (traduzível para disco rígido), um mouse (não traduzível) ou ainda um preview (pode ser traduzido ou não).

E na documentação? Tudo é traduzido?
Depende. A documentação permite algo que não é possível (somente em raros casos) nos softwares: a adaptação da linguagem original de tal forma que seja criado um contexto correto no idioma de destino. Explico: a frase “show me the code” pode ser traduzida de duas formas: “me mostre o código” ou ainda “mostre-me seu código”. Qual está correta? Depende do contexto onde a frase está sendo usada. Se existe um sujeito na oração, a contundência do “mostre-me seu código” é melhor empregada que “me mostre o código”.

Outro ponto que sempre cria frases sem nexo é a forma de criação das orações em inglês. Um exemplo típico é este: “It’s probably localized into your native language, too.” Se esta frase for traduzida literalmente, fica: “Ele provavelmente está localizado em sua língua nativa também”. Mas e que tal assim: “Ele também deve estar traduzido para seu idioma nativo.” Qual a diferença? Ambas não estão corretas? Sim, estão, mas o segundo exemplo possui uma melhor “estética” na leitura.

A documentação então não é somente uma tradução das palavras e frases, mas sim um verdadeiro trabalho de adaptação do conhecimento que ali está expressado em forma de palavras para um novo idioma. Mas tome cuidado. Muitas vezes pode-se perder o contexto do que se deseja informar se esta adaptação for muito profunda. O ponto exato que separa a boa frase daquela sem nexo somente é descoberto com a prática da tradução e diversas leituras daquilo que está sendo traduzido.

Valores e siglas são traduzidos?
Muito raramente. Valores devem ser convertidos para a moeda local usando parênteses: O software irá custar US$ 1 milhão (R$ 1.93 milhões). Da mesma forma siglas e acrônimos não devem ser traduzidos, mas sim explicados: “a linguagem XML (Extended Markup Language – Linguagem de Marcação Estendida) é usada para a troca de informações”.
Entretanto existem alguns casos onde a tradução é permitida, como por exemplo, siglas usadas para denominar cidades ou estados (principalmente americanos). “O game foi criado em LA”, fica: “O game foi criado em Los Angeles” (observe que game continuar no idioma nativo). O mesmo pode ser usado em NYC (cidade de Nova York) ou ainda suprimidas como em Washington D.C. (cidade de Washington).

Casos estranhos
Anteriormente comentei sobre NYC – cidade de Nova York e grafei o nome da cidade parte traduzida, parte não. Este é um típico caso onde o bom senso prevalece e ambas as grafias estão corretas. Se você escrever em um documento oficial Nova Iorque, estará correto. Entrentanto se escrever Nova York, também é aceito na maioria dos documentos. O mesmo acontece com Washington onde o D.C. (que indica a capital federal e não o estado de Washington) foi suprimido. Entretanto se estiver traduzindo um texto onde o estado é citado, é obrigatória a especificação do “estado de Washington”. Washington somente, para nós, é a capital dos Estados Unidos.

Expressões regionais, gírias ou formas locais do idioma
“He Passed away” – Ele não passou para lugar nenhum, ele faleceu!
Tome cuidado com expressões que não conhece o contexto. Muitas vezes elas podem descaracterizar qualquer tradução. Outro exemplo? “You are fired!” – A pessoa não foi queimada ou levou um tiro, ela foi demitida do emprego.

Mantenha sempre um contato próximo com o desenvolvedor e quando não compreender realmente o que ele está querendo dizer, pergunte. Muitas vezes o uso de determinada expressão dentro de uma frase pode ter um objetivo muito diferente daquele que você está imaginando.

Dicas para a tradução

Claro que dicas para a tradução não poderiam faltar. Algumas, óbvias e outras nem tanto mas todas certamente úteis são encontradas aqui neste resumo.

  • Traduzindo um software
    • Mantenha sempre o software que está sendo traduzido aberto em sua tela. Com isso podem ser verificadas as palavras e expressões, bem como o contexto delas dentro do sistema;
    • Verifique se a tradução é compatível com o espaço destinado à ela. Caso não seja, convença o desenvolvedor a aumentar um pouco o espaço ou ainda fazê-lo flexível, explicando que a palavra, quando traduzida, extrapola a área existente;
    • Tome cuidado com os termos usados. Não traduza tudo e mantenha sempre o contexto daquilo que está sendo informado.
  • Traduzindo documentação
    • Não se prenda a tradução literal. Adapte o melhor possível a informação que está sendo passada para o novo idioma;
    • Tome cuidado com siglas e valores. Especifique-os no idioma local sem remover o original;
    • Mantenha sempre o contexto do assunto/tema que está sendo traduzido, inclusive acrescentando palavras ou expressões a fim de melhor explicar.
  • Dicas para ambos os casos
    • Cuidado com as palavras não traduzíveis. Crie e mantenha aberto um dicionário com estas palavras para consulta;
    • Muna-se de um dicionário do idioma nativo. Se está traduzindo do inglês para português, consiga um dicionário inglês-inglês. Com ele você obtém todos os usos de determinada palavra e pode adaptar para o melhor no idioma de destino;
    • Cuidado com termos muito técnicos. Não crie frases que precisam de explicação adicional para determinado termo, a menos que o original possua esta opção. O mesmo vale para expressões e gírias locais.

Finalizando
Certamente é uma arte traduzir um software e aqui rendo meus agradecimentos à todos os tradutores, principalmente da comunidade de software livre mundial que passam horas e horas nesta árdua tarefa. Mas ao mesmo tempo, como já dito, traduzir pode ser uma grande oportunidade para você e para o desenvolvedor. Poderá aprender e melhorar o conhecimento de um idioma que não é nativo, colaborar com todos os usuários do software e de quebra, ainda pode ter a sorte de arrumar um emprego legal numa empresa (conheço vários que estão assim). Para o desenvolvedor, uma alegria imensa em ver que sua criação está sendo usada em outro país (ou países) e em um idioma que ele nunca imaginou conhecer.

Se deseja algumas dicas de sites onde pode encontrar maiores informações ou ainda projetos que podem ser traduzidos para o Português do Brasil, clique aqui e envie uma mensagem.